Dislexia em Crianças e Modulação Cerebral

dislexia

Escrito por Sigla Educacional

30 de junho de 2025

Modulação Cerebral e Dislexia em Crianças: Evidências sobre tDCS Anódico*

A dislexia é um transtorno neurodesenvolvimental que afeta cerca de 5–10 % das crianças em idade escolar, associado a déficits na leitura, motivados predominantemente por dificuldades na decodificação fonológica

Até 50 % dos indivíduos com dislexia apresentam também déficits em processamento auditivo central (CAPD), especialmente no processamento temporal — fundamental para discriminar sons rapidamente apresentados

Nesse contexto, a técnica de estimulação transcraniana por corrente contínua (tDCS) surge como método não invasivo para modular a excitabilidade cortical em áreas-chave, como o giro temporal superior (STG), envolvidas na percepção auditiva e linguística

Processamento Temporal Auditivo

Estudos de Rahimi et al. (2019) com 17 crianças/adolescentes (9–12 anos) evidenciaram que o tDCS anódico aplicado sobre o STG esquerdo reduziu os limiares no teste gap-in-noise (GIN) e aumentou acertos, comparado ao controle e sham**, ou seja, o estudo mostrou que quando as crianças com dislexia receberam estimulação cerebral verdadeira (tDCS), elas melhoraram a audição em tarefas complexas e, como consequência, passaram a ler com mais precisão e rapidez — especialmente palavras novas ou inventadas. Isso não aconteceu nos grupos que não foram estimulados ou receberam placebo. Além disso, observou-se alteração nas respostas eletrofisiológicas (P1, N1, P2): redução de latência e aumento de amplitude — indicando melhora no processamento temporal de sons

Isso reforça o papel crítico do STG para codificação temporal, fundamental à identificação fonêmica e leitura.

Percepção da Fala em Ambiente Ruidoso e Memória Auditivo-Verbal

Rahimi et al. (2022) investigaram tDCS anódico no STG esquerdo em crianças com dislexia e CAPD, em um desenho dentro de sujeitos. Observaram melhora significativa na percepção da fala em ruído, memória auditivo-verbal de curta duração, além do processamento temporal — com maior precisão e velocidade em tarefas auditivas sob ruído

Esses resultados sugerem que tDCS favorece a filtragem auditiva e retenção verbal, áreas essenciais para conversação em ambientes adversos — situação comum no cotidiano escolar.

Eficiência de Leitura

O mesmo estudo (Rahimi et al., 2022) associou as melhorias auditivas a avanços na leitura de texto e pseudopalavras: maior acurácia e velocidade, comparado a condições controle e sham

Correlações sugerem que a melhora na leitura ocorreu em função das melhorias na percepção da fala em ruído e no processamento temporal.

Esses dados confirmam a hipótese de que tDCS anódico ao Giro Temporal Superior (STG) pode reforçar o vínculo entre processamento auditivo e leitura, oferecendo suporte neurobiológico à reabilitação fonológica.

Sustentação por Estudos Adicionais

Além do GIN, os potenciais evocados auditivos de longa latência (P1, N1, P2) evidenciam neuroplasticidade favorecida pela estimulação

Intervenções de tDCS combinadas com treinamento cognitivo/parieto-temporal (1 mA, 18 sessões em 6 semanas) demonstraram redução de erros em palavras de baixa frequência e pseudopalavras, com efeitos mantidos por 1 mês

Estudos complementares em áreas visuo-espaciais e atenção mostram efeitos dependentes da polaridade da estimulação, reforçando o impacto no sistema de leitura dorsal .

Considerações sobre Segurança e Perspectivas Clínicas

A tDCS é considerada segura e bem tolerada, com efeitos adversos leves e transitórios (coceira, formigamento, leve dor de cabeça). Nenhum estudo relatou eventos graves em crianças/adolescentes com dislexia.

No entanto, os efeitos de longo prazo, protocolos ótimos (frequência, intensidade, número de sessões) e a interação com estímulos cognitivos exigem pesquisa adicional.

Conclusão

Evidências robustas indicam que tDCS anódico sobre o STG esquerdo pode melhorar o processamento temporal auditivo, percepção de fala em ruído, memória auditivo-verbal e eficiência de leitura em crianças com dislexia e CAPD, confirmando a hipótese de que estimular a base auditiva fonológica potencializa o desempenho na leitura.

Esses achados ampliam a compreensão da base neural da dislexia e abrem caminho para intervenções neuromoduladoras complementares aos métodos comportamentais, com potencial para transformar os programas de reabilitação da leitura.

 

* tDCS anódico (do inglês anodal transcranial Direct Current Stimulation) é um tipo de estimulação cerebral não invasiva que usa uma corrente elétrica fraca para modular a atividade do cérebro. Consiste na aplicação de uma corrente elétrica muito leve (geralmente de 1 a 2 miliamperes) sobre o couro cabeludo, usando eletrodos posicionados em áreas específicas do cérebro.

Anódico = eletrodo positivo (ânodo), estimulando ou aumentando a excitabilidade da região cerebral abaixo dele. É usado em contraste com o eletrodo catódico (negativo), que costuma inibir a atividade

Exemplo prático em dislexia:

Quando aplicamos tDCS anódico sobre o giro temporal superior esquerdo (STG):

– Aumentamos a atividade neural naquela área

–  Isso pode melhorar funções como:

– Processamento auditivo

– Percepção da fala no ruído

– Leitura e memória auditiva-verbal

Benefícios observados em estudos com tDCS anódico:

– Maior velocidade e precisão na leitura

– Melhora na identificação de sons e pseudopalavras

– Efeitos positivos na memória auditiva

 

** “Sham” é um termo usado em pesquisas científicas para se referir a uma condição placebo ou falsa, especialmente em estudos com estimulação cerebral ou neurociência.

Qual o objetivo do sham? Controlar o efeito placebo, ou seja, permitir que os cientistas comparem os efeitos reais da estimulação com os efeitos psicológicos (ex: melhora só porque a pessoa “acha” que está sendo tratada).

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