BR-BRACS: Tradução e adaptação transcultural (Boston Residue and Clearance Scale)

BR-BRACS

Escrito por Sigla Educacional

19 de setembro de 2025

Tradução e adaptação transcultural da Boston Residue and Clearance Scale: BR-BRACS

Na revista CoDAS  vol.37, n4, de 2025, Giulia Beatriz Pozena Scaranelo, Suely Mayumi Motonaga Onofri, Leandro de Araújo Pernambuco, Roberta Gonçalves da Silva escreveram um artigo sobre um estudo que teve por objetivo traduzir e adaptar transculturalmente para a Língua Portuguesa do Brasil a The Boston Residue and Clearance Scale (BR-BRACS) e validar o conteúdo da seleção de imagens para compor a escala.

A avaliação de transtornos da deglutição, especialmente os relacionados aos resíduos faríngeos (“pharyngeal residue”), é de fundamental importância em fonoaudiologia. Resíduos na faringe podem aumentar o risco de aspiração laringotraqueal e agravar prognósticos clínicos. Escalas que quantificam esses resíduos em exames instrumentais, como videofluoroscopia da deglutição (VFD) ou videoendoscopia da deglutição (VED), permitem não apenas estimar o grau de comprometimento, mas também orientar intervenções terapêuticas. Entretanto, muitas dessas escalas foram originalmente elaboradas em inglês, requerendo processos adequados de tradução, adaptação cultural e validação para serem utilizadas em populações de língua portuguesa, de modo a preservar equivalência semântica, conceitual e operacional.

Nesse contexto, a Boston Residue and Clearance Scale (BRACS) é uma escala ordinal de 11 pontos, que avalia resíduos faríngeos em 12 sítios anatômicos distintos, classificando a quantidade de resíduo em quatro graus (nenhum/vestígio, leve, moderado, grave) e considerando também a eficiência de “clearance” (capacidade de limpeza do resíduo) por deglutições espontâneas ou estimuladas.

Seguiram a metodologia recomendada por Beaton et al. (2000), que inclui seis etapas para adaptação transcultural de instrumentos de autorrelato ou de avaliação clínica, embora no estudo tenham sido realizadas as três primeiras etapas:

  1. Tradução para o idioma-alvo: duas tradutoras brasileiras, fluentes em inglês e experientes em tradução na área de saúde, realizaram traduções independentes (versões T1 e T2).
  2. Síntese das traduções: as duas traduções foram comparadas entre si e com o original, por tradutoras e autores, em reunião de consenso, para resolver discrepâncias lexicais ou sintáticas, buscando um termo equivalente que fosse usual na área de especialidade em Português do Brasil.
  3. Retrotradução (back-translation): a versão consenso foi retrotraduzida para o inglês por tradutores nativos americanos fluentes em português. As retrotraduções foram comparadas entre si e com o texto original; ajustes foram feitos para resolver discrepâncias. Houve equivalência reconhecida no final desta etapa.

Além dessas, para garantir validade de conteúdo visual e operativa da escala, foi feita uma seleção de imagens representativas do grau de resíduos faríngeos, com base em:

  • revisão da literatura para definição operacional de resíduos faríngeos;
  • análise de 50 exames de videoendoscopia da deglutição (população com etiologia neurológica), aleatorizados;
  • análise perceptivo-visual das imagens por três juízes especialistas, que avaliaram se concordavam ou discordavam de cada imagem em relação à localização anatômica e grau de resíduo.

Para aferir a confiabilidade da seleção das imagens quanto ao conteúdo (local e grau de resíduo), utilizou-se o teste Kappa de Fleiss, com intervalo de confiança de 95%. Os resultados indicaram concordância quase perfeita entre os juízes, com coeficiente de cerca de 0,958 (IC 95%) nas classificações das imagens selecionadas. Houve algumas discordâncias pontuais, especialmente em regiões anatômicas com sobreposição ou em imagens estáticas (como em “região pós-cricóidea”) sobre os graus “moderado” vs “grave”, ou em classificações de localização anatômica que incluíam mais de uma estrutura (por exemplo “parede lateral da faringe e parede posterior da faringe”) ou “valéculas e ponta da epiglote”. Essas discordâncias foram discutidas e resolvidas por consenso.

O processo garantiu que a versão portuguesa-brasileira da escala mantivesse equivalência semântica, sintática e gramatical com o original. As discrepâncias iniciais identificadas entre as traduções T1 e T2 foram majoritariamente resolvidas na versão consenso, seja escolhendo uma versão ou ajustando termos. A retrotradução reforçou a equivalência com a escala original, sem alterações conceituais significativas.

A validade de conteúdo das imagens foi confirmada, já que os juízes demonstraram alto nível de concordância quase perfeita para representar cada região anatômica e cada grau de resíduo previsto pela escala original. Isso fortalece a utilidade das imagens como suporte visual para a aplicação da escala em contexto clínico no Brasil.

A adaptação transcultural assume papel central para a aplicabilidade clínica de instrumentos diagnósticos, sobretudo em áreas como a disfagia orofaríngea, onde variabilidade cultural e de linguagem pode comprometer a compreensão, interpretação e uso das escalas. No estudo da BR-BRACS, a maior parte das divergências ocorreu nos segmentos que descrevem instruções (parágrafo de uso da escala), o que é compatível com achados em outras adaptações de escalas que envolvem anatomia ou expressões técnicas, onde termos anatômicos tendem a ser mais consistentes entre idiomas, mas estruturas sintáticas, expressões idiomáticas ou instruções mais complexas suscitam variação.

A literatura indica que traduções de instrumentos semelhantes também enfrentam desafios similares: equivalência semântica, sintática, idiomática, conceitual e operacional. Referências como Beaton et al. (2000) orientam tais processos, enquanto estudos prévios de adaptação de escalas de resíduos faríngeos ou avaliação de disfagia (por exemplo, a Yale Pharyngeal Residue Severity Rating Scale) ilustram práticas de validação de conteúdo visual.

Apesar de bem conduzido, o estudo reconhece limitações. A seleção de imagens estáticas, por exemplo, pode limitar a percepção do “clearance” em ação, especialmente em regiões anatômicas complexas ou quando resíduos são pequenos ou parcialmente escondidos. Outro ponto é que apenas a validade de conteúdo (imagens e tradução) foi avaliada até o momento; ainda se fazem necessários estudos posteriores de confiabilidade (intra e inter-avaliadores), equivalência de mensuração (ver se pontuações correspondem quantitativamente ao original em situações reais), e outras evidências psicométricas como validade de critério, sensibilidade à mudança.

O estudo demonstrou que a versão brasileira da Boston Residue and Clearance Scale (BR-BRACS) foi traduzida e adaptada transculturalmente com sucesso, apresentando equivalência semântica, sintática e gramatical com o original, e que as imagens selecionadas para representar os diferentes graus e locais de resíduos faríngeos possuem alta validade de conteúdo. Com isso, a BR-BRACS constitui uma ferramenta promissora para uso clínico e pesquisa em disfagia orofaríngea no Brasil, potencialmente contribuindo para diagnósticos mais precisos, tratamento guiado e comparações internacionais.

Para consolidar sua aplicabilidade, é recomendada a realização de estudos que avaliem confiabilidade inter e intra-avaliador, equivalência de mensuração versus instrumento original, bem como sua utilidade (sensibilidade, especificidade) em diferentes populações clínicas, inclusive com diferentes etiologias de disfagia.

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